Cubismo e Relativismo – Um salto na dimensão das idéias

Naquela tarde de 1905, o jovem Albert voltava para sua casa, do escritório de patentes em Berna, na Suíça, carregado com uma estranha emoção. O trabalho de analista de projetos de engenharia não era o sonho que Albert acalentava, mas, de certa forma, o emprego público lhe possibilitava algum tempo para suas pesquisas em física, sua paixão desde a tenra idade.

Ainda criança, seus mestres duvidavam das suas capacidades intelectuais, pois seu desenvolvimento se dava de modo moroso. Sentia muita dificuldade de se adaptar às normas rígidas de ensino da época. Os professores, muito autoritários, forçavam   seus alunos à memorização dos assuntos. Mas o menino Albert preferia matérias que exigiam compreensão e raciocínio, como a matemática, a geometria e a física. Muito desatento, chegou a ser suspenso da escola várias vezes. Realmente devia ser difícil para Albert conviver com tudo isso, como até hoje deve ser, para crianças cujas mentes são mais soltas, mais imaginativas.

Mas voltemos àquela tarde de 1905. Albert estava ansioso, mas estranhamente feliz. Parecia um menino que tinha descoberto um tesouro. Se suas teorias estivessem corretas, tudo o que, até então, os cientistas pensavam sobre o universo talvez não fosse verdade, ou talvez fossem verdades relativas.

Tudo o que havia se pensado sobre tempo, espaço,massa, energia e gravitação poderia ser refutado e repensado, e as consequências de suas novas idéias para os avanços da ciência e das sociedades eram ainda mais imprevisíveis.

Essas idéias tinham a ver com coisas que estávamos acostumados a pensar que eram verdadeiras há muito tempo.

Todo mundo sabia que o tempo era igual para todo mundo, que ele vinha do  passado, passava pelo presente e ia para o futuro. Mas Albert, aquele menino que não  prestava atenção na lição do professor, mas prestava atenção em outras coisas mais ‘doidas’,havia descoberto que cada um de nós vivia num tempo diferente. Isso dependia de nossa velocidade, que éramos máquinas do tempo.

Ainda não havíamos percebido isso porque nossas velocidades no dia-a-dia são muito pequenas, mas mesmo assim vivíamos em tempos diferentes. Se pudéssemos viajar a uma velocidade de um bilhão de quilômetros por hora, dando algumas voltas no quarteirão, poderíamos parar vinte ou trinta anos depois. Mas ainda,que observadores distintos podiam ver o mesmo evento de maneiras diferentes.

Isso, com certeza, ia de encontro a muitas formas de preconceito. Descobriu também que os eventos em nosso universo acontecem no que chamou de espaço-tempo contínuo, uma quarta dimensão intrínseca aos eventos, e que a gravidade passava a ser uma propriedade geométrica do espaço-tempo.

Apenas a luz no vácuo tinha velocidade constante,mas se, por exemplo, passasse por um corpo do tamanho do Sol, seu movimento não seria mais retilíneo, mas curvo, pois, ‘não teríamos mais uma atração gravitacional entre os corpos, mas uma matéria que ao deformar o espaço-tempo permite que os objetos que estejam próximos à deformação sintam seu efeito. A órbita da Terra passa então a ser determinada, não pela atração Sol-Terra, mas pela deformação do espaço temporal que esses corpos produziam ao seu redor. O espaço-Tempo não pode ser mais visto como um recipiente vazio que pode ser preenchido da forma que quisermos, ele não é mais independente da matéria, mas está condicionado por ela. Assim a geometria do espaço não é um priori’.

O observador – esse cara importante

Todas essas idéias também suscitavam outras ainda mais estranhas, pois se alguém estivesse num planeta há vinte mil anos-luz de distância do nosso e pudesse nos observar de lá com uma espécie de telescópio, veria apenas alguns homens primitivos acendendo fogo com lascas de pedra. Esse observador não veria o nosso presente, mas o nosso passado distante. Esse observador certamente nos acharia ainda muito atrasados tecnologicamente, bichinhos tentando sobreviver num mundo primitivo. Isso acontece também conosco. Quando olhamos para o céu em noites estreladas, vemos um céu velho, um céu do passado. As estrelas e planetas que vemos já não estão mais ali. Muitas delas inclusive já desapareceram. Até o Sol não está mais ali quando o vemos durante o dia, já que a luz desse astro demora mais ou menos oito minutos e vinte segundos para chegar até nós. O que vemos também é um Sol do passado.

O  jovem Albert Einstein, o menino que se encantava com livros de geometria e adorava tocar violino, nos ensinou muito mais do que isso. Ensinou que o que hoje temos como verdades absolutas podem ser na verdade um grande engano. Que pessoas em lugares distintos podem estar corretas, mesmo com pensamentos diferentes à respeito de eventos iguais. Isso nos devia tornar mais humildes e mais amorosos com as idéias de nossos semelhantes, mas de fato, a história veio provar que demoramos mais para aprender essas lições.

Elas ainda não são ensinadas na maioria de nossas escolas, apesar de fazer mais de cem anos que suas teorias foram escritas e comprovadas.

Mas não foram apenas as idéias de Einstein que contribuíram pra nos mostrar tudo isso. Em outro país não muito distante, alguns jovens também tinham idéias parecidas, e fizeram uma verdadeira revolução no modo como veríamos as coisas em nosso mundo, principalmente como veríamos a arte. Dentre esses jovens, o que mais se destacou foi um espanhol, cujo nome mais parecia um tratado de genealogia. Seu nome completo era Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno Maria de los Remedios Cipriano de la Santissima Trinidad Ruiz y Picasso.

O perigo de novos paradigmas

A ideia de demonstrar a passagem do tempo na pintura já era um pouco mais antiga. Quando Monet pintava o mesmo tema em várias horas do dia, pensava já em aprisionar esse tempo, transformar sua pintura numa obra dinâmica, que contivesse a idéia de temporalidade da vida real que se observa no dia-a-dia. O tempo era considerado como parte integrante do espaço. Esse exercício era muito comum entre os impressionistas. A luz era seu objeto de estudo, assim como a maneira como enxergávamos o mundo através dessa sucessão de eventos no tempo.

Nessa época, lá pelos fins do século XIX, os artistas também estavam preocupados em fazer uma arte que tivesse uma função também social, já que ‘ a exigência de se desenvolver a funcionalidade da arte se inclui na tendência geral da sociedade, já totalmente envolvida no ciclo econômico de produção e consumo, em realizar a máxima funcionalidade. Os artistas querem participar na demolição das velhas hierarquias estáticas de classes e no advento de uma sociedade funcional sem classes. Suas pesquisas se incluem no processo rumo a uma ordem democrática da sociedade, na história da luta das forças progressivas contra as forças conservadoras’ (ARGAN 2002)

Esses homens buscavam se opor à perda de decisão e liberdade que existiam no trabalho artesanal, e que haviam sido aniquiladas pela industrialização. Nas palavras de Karl Marx, isso havia criado a alienação dos indivíduos. Os cientistas então trabalhavam no sentido de valorizar o indivíduo e seu trabalho. A arte tendia a ser a bandeira de luta que mostraria a importância da renovação da realidade. Com isso, ela passa por uma transformação peculiar, em que já não apresenta características apenas de representação, mas também de funcionalidade.

A arte tinha, então, nessa época duas escolhas: ou se tornaria um modelo de operação criativa, contribuindo, dessa forma, para a desalienação, ou compensaria essa alienação fora da atividade industrial, favorecendo a recuperação das energias criativas.É nesse momento que o cubismo de Picasso e Braque assume um papel fundamental, juntamente com a física de Einstein.

Num mundo onde a energia criativa parece não ter valor comercial e industrial, tanto a maravilhosa intuição embutida no insight, que é a teoria da relatividade restrita, quanto nos desdobramentos da pintura cubista que insinuam a visão da realidade por múltiplos ângulos e, portanto, de formas de leitura diferentes num mesmo tempo,passam a ser fortemente rechaçadas por sociedades calcadas em teorias estagnadoras e autoritárias.

Algumas teorias políticas, dentre elas o fascismo, o nazismo e mais tardiamente, o macarthismo irão se contrapor não apenas à teoria da relatividade restrita e à pintura moderna,mas também aos seus criadores e precursores. Einstein e Picasso, além de espíritos geniais, eram ferrenhos combatentes dessas visões políticas,do militarismo e da escravização mental dos seres humanos, pelas teorias da propaganda massificadora. Eles estavam certos, pois alguns anos depois o mundo verificaria por si mesmo os perigos do controle da mente, por parte de regimes violentos que se instalariam na Europa e iriam provocar o conflito bélico mais sangrento da história da humanidade.

Cubismo – o que é em sim mesmo

O cubismo é a pesquisa analítica sobre a estrutura funcional de uma obra de arte. Um quadro cubista é um mundo em quatro dimensões de lógica própria, pois, ‘ enquanto Monet pintou vários quadros para mostrar a temporalidade do espaço, Picasso colocou a simultaneidade, a junção espaço-tempo num único quadro. No ‘Les Demoiselles D’Avignon’ a mulher agachada está representada simultaneamente de costas e de frente. Essa representação pode ser pensada como a projeção da quarta dimensão, já que para um mesmo observador vê-la de frente e de costas necessitaria locomover-se entre dois pontos no espaço e isso levaria algum tempo.

Sua estrutura formal é a demonstração de que é possível enganar o tempo, e que a matéria que está contida no espaço é o que define e lhe dá significado. O universo cubista atenta seriamente contra as leis do tempo/espaço conhecidos. Os elementos são vistos ao mesmo tempo de pontos de referências diferentes. São esses observadores virtuais que observam a tela cubista e criam mundos distintos da tridimensionalidade. A geometria euclidiana (em três dimensões) é transcendida pelo cubismo. O impacto que essas obras trouxeram aos mais tradicionais resquícios do objetivismo na arte podem ser comparados aos mesmos impactos trazidos às ciências oficiais pelas idéias do jovem Albert.

Picasso, Braque e Einstein lavaram os olhos do mundo das grossas manchas clássicas que nos impediam de ver um universo mais rico,mais vivo, mais complexo e belo. Refiro-me a Braque, porque nas palavras de Argan, ‘a fase inicial do cubismo, cezaniana e analítica, é o resultado da primeira pesquisa de grupo na arte moderna, de 1908 a 1915, Picasso e Braque colaboram tão estreitamente que é difícil distinguir entre as obras de um e de outro’

O cubismo ainda na visão dos seus precursores, tem um cunho essencialmente realista, mas não no sentido de imitar o aspecto do verdadeiro (‘não se imita aquilo que não se quer criar’ – dirá Braque), mas no sentido de criar algo novo que dará origem a um objeto irredutível a qualquer outro, dotado de uma estrutura e funcionamento próprios. Um mecanismo mágico de mostrar como as coisas podem ser criadas.

Para os cubistas, a forma é parte integrante da realidade do objeto e as técnicas de collage se tornam frequentes. O cubismo elimina também a distinção entre pintura e escultura e contribui fortemente para a formação do princípio do funcionalismo arquitetônico.

Os profissionais não deveriam se deixar levar apenas pela razão em seus projetos, mas abrir espaço para a intuição, para o vagar da mente, para os dias de folga, para o relaxamento das tensões,para a felicidade. Tocar violino talvez não seja a melhor opção para a a maioria, mas certamente foi para o jovem Albert. Aquele menino simples que olhava as estrelas enquanto a maioria olhava para o chão.

‘A imaginação é mais importante que o conhecimento’ – Albert Einstein

Texto Original de Valmir Perez 

Fonte: lume arquitetura

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